Cerco de Constantinopla (717–718)





Disambig grey.svg Nota: Para outros significados, veja Cerco de Constantinopla.

Coordenadas: 41° 0' 30" N 28° 58' 30" E























































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































































Segundo cerco árabe de Constantinopla

Guerras bizantino-árabes

Byzantine Constantinople-pt.svg
Mapa de Constantinopla [nt 1]
Data
15 de julho ou agosto de 717 [nt 2]
15 de agosto de 718
Local

Constantinopla
Desfecho
Vitória decisiva dos bizantinos e búlgaros
Beligerantes




 Califado Omíada

 Império Bizantino
Primeiro Império Búlgaro Império Búlgaro
Comandantes




Califado OmíadaMaslama
Califado OmíadaSolimão
Califado Omíada Omar

Império Bizantino Leão III, o Isauro
Primeiro Império Búlgaro Tervel
Forças



120 000 homens [2][3]
2 560 navios [4]
desconhecidas



   



Tramo restaurado das muralhas de Teodósio junto à Porta de Selímbria, que protegiam o lado terrestre de Constantinopla e que uma vez mais se revelaram cruciais para a defesa da cidade durante o cerco de 717–718


O segundo cerco árabe de Constantinopla foi uma ofensiva militar levada a cabo por forças terrestres e navais do Califado Omíada contra Constantinopla, a capital do Império Bizantino entre julho de 717 e 15 de agosto de 718. A campanha marcou o culminar de vinte anos de ataques e ocupações progressivas das terras fronteiriças bizantinas por parte dos Árabes, num período em que o poderio bizantino estava enfraquecido por prolongados tumultos internos. Em 716, depois de anos de preparação, as forças árabes comandadas pelo príncipe omíada Maslama ibne Abdal Malique (Μασαλμᾶς, Masalmas nas fontes bizantinas) invadiram a Ásia Menor. Inicialmente, os Árabes esperavam tirar partido da guerra civil bizantina e aliaram-se ao general Leão III, o Isauro, que tinha-se rebelado contra o imperador Teodósio III (r. 715–717). Contudo, Leão enganou-os e assegurou o trono bizantino para ele próprio.


Depois de passar o inverno nas costas ocidentais da Ásia Menor, os Árabes cruzaram o mar em direção à Trácia no início do verão de 717 e construíram linhas de cerco para bloquearem a cidade, a qual era protegida pelas maciças muralhas de Teodósio. A armada árabe, que acompanhava o exército terrestre e deveria completar o bloqueio da cidade por mar, foi neutralizada logo que chegou pela marinha bizantina através do uso de fogo grego, o que possibilitou que Constantinopla pudesse ser abastecida por mar, ao mesmo tempo que os Árabes foram dizimados pela fome e doença durante o inusitadamente duro inverno que se seguiu. Na primavera de 718, duas frotas árabes enviadas como reforços foram destruídas pelos Bizantinos após as suas tripulações cristãs terem desertado. Um exército enviado por terra pelo califado caiu numa emboscada e foi derrotado. A juntar a isto, os aliados búlgaros dos Bizantinos atacaram os Árabes pela retaguarda, obrigando-os a levantar o cerco em 15 de agosto de 718. Na viagem de volta, a frota que transportava as tropas árabes foi destruída quase por completo por desastres naturais.


O fracasso do cerco teve amplas repercussões. A resistência de Constantinopla assegurou a sobrevivência e continuidade de Bizâncio e provocou uma alteração na perspetiva estratégica do califado: embora os ataques regulares a territórios bizantinos continuassem, o objetivo de conquista permanente foi abandonado. Os historiadores atribuem ao cerco a paragem do avanço muçulmano para o interior da Europa e consideram-no uma das batalhas mais decisivas da história.




Índice






  • 1 Contexto


  • 2 Fontes históricas


  • 3 Fases iniciais


  • 4 Forças oponentes


  • 5 Cerco


  • 6 Rescaldo


  • 7 Avaliação e impacto histórico


  • 8 Impacto cultural


  • 9 Notas


  • 10 Referências


  • 11 Bibliografia


    • 11.1 Usada no texto


    • 11.2 Complementar







Contexto |


Após o primeiro cerco árabe de Constantinopla, em 674-678, os Árabes e Bizantinos desfrutaram de um período de paz. A partir de 680, o Califado Omíada mergulhou na segunda guerra civil muçulmana, o que possibilitou a ascendência de Bizâncio a Oriente, que se traduziu no recebimento de avultados tributos pelos imperadores bizantinos, pagos pelo governo omíada de Damasco.[5]


Em 692, quando os Omíadas emergiram como vencedores da guerra civil muçulmana, o imperador Justiniano II (r. 685–695 e 705–711) reabriu as hostilidades. O resultado foi uma série de vitórias árabes que conduziram à perda do controlo bizantino da Arménia e dos principados do Cáucaso e a um avanço gradual dos Árabes em terras bizantinas. Todos os anos os generais do califado, geralmente membros da família omíada, lançavam raides no território bizantino e capturavam fortalezas e cidades.[6]


A partir de 712, o sistema de defesa bizantino começou a dar sinais de colapso: os raides árabes penetravam cada vez mais longe no interior da Ásia Menor, fortalezas fronteiriças eram repetidamente atacadas e saqueadas e as referências históricas a reações bizantinas tornaram-se cada vez mais raras.[7] Para o sucesso dos Árabes contribuiu o prolongado período de instabilidade interna que se seguiu à primeira deposição de Justiniano II em 695, durante o qual o trono bizantino mudou de mãos sete vezes em violentas revoluções.[8] Nas palavras do bizantinista Warren Treadgold, «os ataques árabes iriam intensificar-se de qualquer forma depois do fim da sua própria guerra civil [...] Com muitíssimos mais homens, terras e riqueza do que Bizâncio, os Árabes tinham começado a concentrar a sua força contra ele. Agora ameaçavam extinguir o império completamente capturando a sua capital.»[9]



Fontes históricas |


A informação acessível sobre o cerco provém de fontes redigidas em datas posteriores, que são muitas vezes mutuamente contraditórias. A principal fonte bizantina é o extenso e detalhado relato da “Crónica” de Teófanes, o Confessor (760–817) e, secundariamente, o relato mais curto no “Breviário” do patriarca Nicéforo I (m. 828), que apresenta algumas diferenças, principalmente cronológicas, em relação à versão de Teófanes.[10] Para os acontecimentos do cerco, aparentemente ambos os autores usaram um registo feito durante o reinado de Leão III (r. 717–741), que por isso o apresenta de forma favorável. Para os acontecimentos de 716, Teófanes parece ter-se baseado numa biografia desconhecida de Leão, que é ignorada por Nicéforo.[11]


As fontes árabes são sobretudo o “Kitab al-'Uyun” e a narrativa incluída na “História dos Profetas e Reis” de Atabari (838–923), esta última mais concisa, ambas baseadas em registos da autoria de escritores árabes do início do século IX. Essas fontes são mais confusas e contêm vários elementos lendários. As fontes em língua assíria baseiam-se em Agápio de Hierápolis (m. 942) que provavelmente se baseou nas mesmas fontes primárias que Teófanes, mas é muito mais breve.[12]



Fases iniciais |





Soldo com efígie de Anastácio II, que preparou a cidade para o previsível ataque árabe


Os êxitos Árabes abriram o caminho para um segundo assalto a Constantinopla, um empreendimento que já tinha sido iniciado durante o reinado do califa Ualide I (r. 705–715). A seguir à sua morte, o irmão e sucessor Solimão ibne Abdal Malique (r. 715–717) pegou no projeto com mais vigor , segundo as fontes árabes devido a uma profecia que dizia que um califa com o nome de um profeta iria capturar Constantinopla; Solimão era o único membro da família omíada que tinha tal nome. De acordo com as fontes assírias, o novo califa jurou «não parar de lutar contra Constantinopla antes de ter esgotado o país dos Árabes ou ter tomado a cidade.»[13] As forças omíadas começaram a reunir-se na planície de Dabique, a norte de Alepo, sob a supervisão direta do califa. Como Solimão estava muito doente para participar pessoalmente na campanha, confiou o comando ao seu meio-irmão Maslama ibne Abdal Malique.[14] A operação contra Constantinopla deu-se num período em que o estado omíada atravessava um período de expansão contínua para leste e para oeste, com os exércitos muçulmanos a registarem avanços na Transoxiana, Índia e no Reino Visigótico da Hispânia.[15]


Os preparativos dos Árabes, especialmente a construção de uma grande frota, não passou despercebida aos Bizantinos. O imperador Anastácio II (r. 713–715) enviou uma embaixada a Damasco, a capital omíada, chefiada pelo patrício e prefeito urbano Daniel de Sinope, cuja missão oficial era pedir a paz, mas na realidade tinha como objetivo espiar os Árabes. Anastácio preparou-se para o cerco inevitável — as fortificações de Constantinopla foram reparadas e equipadas com abundante artilharia (catapultas e outras armas de cerco), ao mesmo tempo que foram armazenados mantimentos na cidade. Além disso, os habitantes que não conseguiram armazenar provisões para pelo menos três anos foram evacuados.[16]




Mapa do Império Bizantino c. 740




Tramo das muralhas de Teodósio perto da Porta de São Romão (em grego: Πόρτα τοῦ Ἁγίου Ρωμανοῦ), atualmente conhecida como Topkapı (Porta do Canhão)


Anastácio reforçou também a sua marinha e no início de 715 enviou-a contra a frota árabe que tinha chegado a Fénix[nt 3] para recolher madeira para a construção de mais navios. No entanto, em Rodes, encorajada pelos soldados do Tema Opsiciano, a frota bizantina revoltou-se, matou o seu comandante João, o Diácono e zarpou para norte em direção a Adramício. Ali aclamaram imperador o relutante Teodósio III (r. 715–717), um cobrador de impostos.[19] Anastácio dirigiu-se então para a Bitínia, no Tema Opsiciano, para enfrentar a rebelião, mas a frota rebelde navegou para Crisópolis. Daí lançou ataques contra Constantinopla, situada no outro lado do Bósforo, até que, no final do verão, simpatizantes da rebelião lhes abriram os portões da cidade. Anastácio resistiu em Niceia durante vários meses, até que finalmente concordou em resignar e tornar-se monge.[20] A ascensão ao trono de Teodósio, que as fontes descrevem como relutante, incapaz e um imperador fantoche controlado pelos Opsicianos, provocou a reação dos outros temas, especialmente do Anatólico e do Armeníaco, comandados, respetivamente, pelos estrategos (generais) Leão, o Isauro e Artabasdo.[21]


Enquanto o Império Bizantino se encontrava praticamente em guerra civil, os Árabes iniciaram o avanço que tinham vindo a preparar cuidadosamente. Em setembro de 715, a vanguarda comandada pelo general Solimão ibne Muade marchou pela Cilícia em direção à Ásia Menor, tomando a fortaleza estratégica de Lulo pelo caminho. Passaram o inverno em Afique, um local não identificado perto da saída ocidental das Portas da Cilícia. No início de 716, o exército de Solimão continuou em direção à Ásia Menor central. A frota omíada comandada por Omar ibne Hubaira navegou ao longo da costa ciliciana, enquanto Maslama ibne Abdal Malique ficou na Síria com o exército principal à espera de desenvolvimentos.[22]


Os Árabes esperavam tirar partido da desunião entre os Bizantinos. Maslama tinha já entrado em contacto com Leão, o Isauro. O bizantinista francês Rodolphe Guilland (1888–1981) teorizou que Leão propôs tornar-se vassalo do Califado, apesar da sua intenção ser usar os Árabes para concretizar os seus próprios planos de tomada do poder. Em troca, Maslama apoiou Leão esperando com isso maximizar a confusão e enfraquecer o império, facilitando a sua missão de tomar Constantinopla.[23]




Soldo com a efígie de Leão III, o Isauro


O primeiro objetivo de Solimão era a estrategicamente importante fortaleza de Amório, que os Árabes pretendiam usar como base no inverno seguinte. Amório tinha sido deixada sem defesas no tumulto da guerra civil e teria caído facilmente, mas os Árabes optaram por apoiar as posições de Leão para contrabalançar o peso político e militar de Teodósio. Foram apresentadas à cidade condições de rendição se os seus habitantes reconhecessem Leão como imperador. A fortaleza capitulou, mas apesar disso não abriu as suas portas aos Árabes. Leão foi até às proximidades com um punhado de soldados e empregou uma série de estratagemas e negociações para estacionar uma guarnição de 800 homens na cidade. O exército árabe, contrariado no seu objetivo e debatendo-se com falta de abastecimentos, retirou. Leão escapou para a Pisídia e, no verão, apoiado por Artabasdo, foi proclamado e coroado imperador, desafiando abertamente Teodósio.[24][nt 4]


O êxito de Leão em Amório ocorreu no melhor momento, pois Maslama e o exército árabe principal tinham entretanto atravessado os Montes Tauro e marchavam em direção à cidade. Além disso, como o general árabe não tinha recebido notícias do jogo duplo de Leão, não devastou os territórios por onde marchou, que faziam parte dos temas dos Armeníacos e dos Anatólicos, cujos governadores ele julgava ainda serem seus aliados.[25] Quando se encontrou com o exército de Solimão em retirada e tomou conhecimento da situação, Maslama mudou de planos: começou por atacar Acroino e daí marchou para as terras costeiras ocidentais para ali passar o inverno, saqueando Sárdis e Pérgamo pelo caminho. A frota árabe passou o inverno na Cilícia.[26] Entretanto, Leão iniciou a sua marcha sobre Constantinopla. Capturou Nicomédia, onde encontrou, entre outros oficiais, o filho de Teodósio, e depois marchou para Crisópolis. Na primavera de 717, depois de breves negociações, conseguiu que Teodósio resignasse e o reconhecesse como imperador, entrando na capital em 25 de março. Teodósio e o filho foram autorizados a retirarem-se para um mosteiro como monges, enquanto Artabasdo foi promovido a curopalata ("encarregado do palácio") e casou com Ana, filha de Leão.[27]



Forças oponentes |




A chamada Torre de Mármore (em turco: Mermer Kule), situada junto ao mar de Mármara, na junção entre a Muralha de Teodósio (terrestre) e a Muralha Propôntida (marítima)


Desde o início que os Árabes se preparavam para um assalto em larga escala a Constantinopla. A "Crónica de Zuqnin", uma obra siríaca do final do século VIII, relata que os Árabes eram "inúmeros", enquanto o cronista Miguel, o Sírio refere um número muito inflacionado de 200 000 homens e 5 000 navios. O escritor árabe do século X Almaçudi fala em 120 000 soldados e o relato de Teófanes, o Confessor (ca. 760–817) em 1 800 navios. Foram reunidos mantimentos para vários anos, máquinas de cerco e materiais incendiários (nafta). Diz-se que o comboio de abastecimento envolvia 12 000 homens, 6 000 camelos e igual número de burros. Segundo Bar Hebreu, o historiador sírio do século XIII, as tropas incluíam 30 000 voluntários (mutaua) para a guerra santa (jiade).[28] Quaisquer que tenham sido os verdadeiros números, os atacantes eram consideravelmente mais numerosos do que os defensores. Para Treadgold, a força de ataque árabe pode ter sido mais numerosa do que todo o exército bizantino.[3]


Sabe-se pouco acerca da composição detalhada da força atacante, mas aparentemente era maioritariamente constituída e era comandada por Sírios e jaziranos da elite Alxam ("Povo da Síria"), o pilar principal do regime omíada, veteranos nas guerras contra Bizâncio.[29] Omar ibne Hubaira, Solimão ibne Muade e Bactari ibne Haçane são mencionados como os lugar-tenentes de Maslama por Teófanes e Agápio de Hierápolis, ao passo que o posterior “Kitab al-'Uyun” substitui Bactari por Abdalá al-Battal.[30] Não obstante o cerco ter consumido uma grande parte dos recursos humanos e materiais do califado,[nt 5] este ainda foi capaz de lançar raides contra a fronteira bizantina na Ásia Menor oriental enquanto o cerco decorria. Em 717, Daude, filho do califa Solimão, capturou uma fortaleza perto de Melitene e em 718 Amr ibn Qais assolou a fronteira.[32]


Desconhecem-se os números do lado bizantino. À parte dos preparativos de Anastácio II, que podem ter sido negligenciados depois da sua deposição,[33] os Bizantinos contaram com a assistência dos Búlgaros, com quem Leão assinou um tratado com Tervel (r. 700–721) que pode ter incluído uma aliança contra os Árabes.[34][nt 6]



Cerco |




Mapa das muralhas de Constantinopla





Iluminura do "Escilitzes de Madrid" (século XI mostrando navios bizantinos usando fogo grego


No início do verão Maslama ordenou à sua frota que se juntasse a ele e cruzou o Helesponto em Abidos em direção à Trácia. Os Árabes iniciaram a sua marcha para Constantinopla, arrasando as terras por onde passavam, recolhendo mantimentos e saqueando as cidades.[36] Em meados de julho ou meados de agosto, o exército árabe chegou a Constantinopla e isolou completamente a cidade por terra construindo dois muros paralelos de circunvalação de pedra, um virado para os campos da Trácia e outro virado para as muralhas. Entre os dois muros foi instalado o campo árabe. A acreditar nas fontes árabes, neste ponto Leão ofereceu um resgate pela cidade, pagando uma moeda de ouro por cada habitante, mas Maslama respondeu que não podia haver paz com vencidos e que a guarnição árabe de Constantinopla já tinha sido escolhida.[37]


A frota árabe comandada por Solimão[nt 7] chegou em 1 de setembro, inicialmente ancorando perto de Hebdomo, a sudoeste de Constantinopla. Dois dias depois, Solimão comandou a sua frota para o estreito do Bósforo e vários esquadrões começaram a ancorar nos subúrbios europeus e asiáticos da cidade. Uma parte foi para sul de Calcedónia, para os portos de Eutrópio e Antémio para vigiar a entrada sul do Bósforo, enquanto o resto da frota navegou para o interior do estreito, passando em frente a Constantinopla, e começou a desembarcar nas costas entre Gálata e Clídio, cortando a comunicação da capital bizantina com o mar Negro. Mas quando a guarda da retaguarda da frota árabe, constituída por vinte navios pesados com 2 000 marinheiros, estava a passar na cidade, o vento norte fê-los parar e depois empurrou-os para as muralhas, onde um esquadrão bizantino os atacou com fogo grego. Teófanes reporta que alguns foram afundados, enquanto outros, velejaram, ardendo, para as ilhas dos Príncipes de Oxeia e Plateia. A vitória encorajou os Bizantinos e desanimou os Árabes, que segundo Teófanes, tinham originalmente planeado navegar até às muralhas marítimas durante a noite e escalarem-nas usando os remos dos navios. Na mesma noite, Leão mandou estender a corrente entre Gálata e Constantinopla, fechando a entrada do estuário do Corno de Ouro. A frota árabe ficou relutante em entrar em combate com os Bizantinos e retirou para o porto seguro de Sostênio, mais a norte, na costa europeia do Bósforo.[38]


O exército árabe estava bem aprovisionado; os registos árabes reportam grandes montículos de mantimentos empilhados nos seus acampamentos, e inclusivamente tinham levado trigo para semear e colher no ano seguinte. Contudo, o fracasso da marinha árabe em bloquear a cidade implicava que os Bizantinos também podiam ser abastecidos por mar. Além disso, as tropas árabes já tinham devastado os campos da Trácia durante a sua marcha, pelo que não contavam com eles para se reabastecerem. A marinha e o segundo exército árabes, que operavam nos subúrbios asiáticos de Constantinopla conseguiam levar alguns mantimentos ao exército de Maslama, mas em quantidades limitadas.[39] Quando o cerco se prolongou pelo inverno, foram iniciadas negociações entre ambos os lados, extensamente reportadas pelas fontes árabes mas ignoradas pelos historiadores bizantinos. Segundo os relatos árabes, Leão continuou a fazer um jogo duplo com os seus ex-aliados. Segundo uma das versões, ele levou ardilosamente Maslama a entregar a maior parte das suas provisões de cereais, enquanto outra versão relata que o general árabe foi persuadido a queimá-los todos para que os habitantes da cidade se convencessem que estava eminente um assalto e dessa forma induzi-los a renderem-se.[40]




Ataque das tropas de Maslama durante o cerco, numa tradução búlgara da Crónica de Constantino Manasses (século XII)




A Porta Dourada (em grego: Χρυσεία Πύλη; transl.: Chryseia Pylē; em latim: Porta Aure)


O inverno de 718 foi extremamente rigoroso, com a neve cobrindo o terreno por mais de três meses. Quando os mantimentos se esgotaram no acampamento árabe, a fome levou os soldados a comer os seus cavalos, camelos, outros animais, e até cascas, folhas e raízes de árvores. Varreram a neve dos campos que tinham cultivado para comerem os rebentos verdes e há relatos de canibalismo e de ingestão das próprias fezes. Em consequência de tudo isso, o exército foi devastado por epidemias; com grande exagero, o historiador lombardo do século VIII Paulo, o Diácono (ca. 720–799) fala em 300 000 árabes mortos pela fome ou doença.[41]


A situação parecia ter tendências para melhorar na primavera, quando o novo califa Omar II (r. 717–720) enviou duas frotas para ajudar os sitiantes: 400 navios do Egito comandados por um comandante de nome Sufyan e 360 navios de Ifríquia comandados por Izide, carregados de mantimentos e armas. Ao mesmo tempo, um exército fresco iniciou a travessia da Ásia Menor para assistir no cerco. Quando as novas frotas chegaram ao mar de Mármara, mantiveram-se longe dos Bizantinos e ancoraram na costa asiática — a egípcia foi para o golfo de Nicomédia, perto do que é hoje Tuzla, e a africana para a zona a sul de Calcedónia (Sátiro, Brías e Kartalimen)[nt 8] A maior parte das tripulações dos navios árabes era cristãos egípcios, que começaram a desertar para os Bizantinos depois de chegarem. Informados pelos egípcios da chegada das novas frotas e da disposição dos reforços árabes, Leão enviou a sua marinha para atacar os navios recém-chegados. Enfraquecidos pela deserção das suas tripulações e indefesos contra o fogo grego, os navios árabes foram destruídos ou capturados juntamente com as armas e abastecimentos que carregavam. Constantinopla ficou assim a salvo de um ataque por mar.[42] Também em terra os Bizantinos registaram vitórias: as suas tropas fizeram cair numa emboscada o exército árabe que se dirigia à capital, comandado por um general de nome Mardasan, e destruíram-no nas colinas em volta de Sofon, a sul de Nicomédia.[43]


A capital imperial podia agora ser facilmente reabastecida por mar e os pescadores locais voltaram ao mar, pois a marinha árabe não voltou a navegar. Ainda sofrendo com fome e doenças, os Árabes foram derrotados numa batalha importante contra os Búlgaros, na qual, segundo Teófanes, morreram 22 000 Árabes. No entanto, não é claro se os Búlgaros atacaram o acampamento árabe por causa do seu tratado com Leão ou se os Árabes foram apanhados em território búlgaro quando procuravam provisões, como é relatado na obra siríaca “Crónica de 846”. Miguel, o Sírio escreveu que os Búlgaros participaram no cerco desde o início, com ataques contra os Árabes quando estes marchavam através da Trácia, e subsequentemente no seu acampamento, mas isto não é corroborado por mais nenhuma fonte.[44]


O cerco tinha evidentemente fracassado e o califa Omar enviou ordens a Maslama para que retirasse. Depois de treze meses de cerco, em 15 de agosto de 718, os Árabes partiram. A data coincidiu com a festa da Dormição da Teótoco, à qual os Bizantinos atribuíram a sua vitória. Os Árabes em retirada não foram estorvados ou atacados no seu regresso, mas a sua marinha perdeu mais navios numa tempestade no mar de Mármara, enquanto outros navios foram incendiados por cinzas do vulcão de Santorini. Alguns sobreviventes foram capturados pelos Bizantinos e Teófanes relata que só cinco navios conseguiram chegar à Síria.[45] As fontes árabes referem que no total pereceram 150 000 muçulmanos durante a campanha, um número que, de acordo com o bizantinista John Haldon, «embora certamente inflacionado, é no entanto indicativo da enormidade do desastre aos olhos medievais.[46]



Rescaldo |




Império Bizantino e territórios muçulmanos no final do Califado Omíada, c. 750


O fracasso da expedição enfraqueceu o estado omíada. Como o historiador Bernard Lewis comentou, «a derrota provocou uma situação grave no poder omíada. O esforço financeiro para equipar e manter a expedição causou um agravamento da opressão fiscal e financeira que já tinha despertado uma oposição muito perigosa. A destruição da marinha e exército da Síria nas muralhas marítimas de Constantinopla privou o regime de base principal do seu poder.»[47]


O golpe no poder do califado foi severo e embora o exército terrestre não tivesse sofrido perdas comparáveis às da marinha, há registos de que Omar ponderou a retirada dos territórios recém-conquistados na Hispânia e na Transoxiana (Turquestão), bem como a completa evacuação da Cilícia e outros territórios bizantinos tomados pelos Árabes nos anos anteriores. Apesar dos seus conselheiros o dissuadirem de tais ações drásticas, a maior parte das guarnições Árabes foram retiradas das regiões da fronteira bizantina que tinham sido ocupadas nos anos anteriores. Na Cilícia, apenas Mopsuéstia foi mantida, como baluarte para defender Antioquia.[48]


Os Bizantinos chegaram a recuperar alguns territórios na Arménia Ocidental durante algum tempo. Em 719, a marinha bizantina levou a cabo raides na costa síria e incendiou o porto de Laodiceia e em 720 ou 721 os Bizantinos atacaram e saquearam Ténis, no Egito.[49] Leão restaurou igualmente o domínio do império na Sicília, onde as notícias do cerco árabe a Constantinopla e a expetativa da queda da cidade tinham levado o governador bizantino local, Basílio Onomágulo, a declarar-se imperador. No entanto, foi neste período que cessou o controlo bizantino efetivo sobre a Sardenha e a Córsega.[50] Além disso, os Bizantinos não se mostraram capazes de explorar o seu êxito lançando ataques de sua iniciativa contra os Árabes. Em 720, depois de um hiato de dois anos, os raides árabes contra Bizâncio recomeçaram, embora já sem objetivos de conquista, assumindo, em vez disso, a forma de incursões de pilhagem no interior dos territórios bizantinos (razias), que eram organizados anualmente. Os ataques árabes intensificaram-se nas duas décadas seguintes, até à vitória bizantina decisiva na batalha de Acroino em 740. Depois das derrotas militares noutros locais e da instabilidade interna que culminou na revolução abássida no final da década de 740, a era da expansão muçulmana chegou ao fim,[51]



Avaliação e impacto histórico |




A Batalha de Poitiers (732), aqui representada num pintura de Charles de Steuben (1788–1856), é frequentemente comparada com o segundo cerco árabe de Constantinopla, por serem dois acontecimentos determinantes para a paragem da expansão islâmica na Europa.


O segundo cerco árabe de Constantinopla foi muito mais perigoso para Bizâncio do que o primeiro, ocorrido 61 anos antes, pois foi um ataque direto bem planeado contra a capital. Em 717–718, os Árabes tentaram isolar completamente a cidade, em vez de se limitarem a um bloqueio brando como tinham feito em 674–678.[32] Representou um esforço do Califado para "decapitar" o Império Bizantino, que teria tornado muito fácil a conquista das restantes províncias, especialmente na Ásia Menor.[52] O fracasso omíada foi sobretudo logístico, pois operavam muito longe das suas bases na Síria. A superioridade da marinha bizantina e do fogo grego, a solidez das fortificações de Constantinopla e a habilidade de Leão para negociar e ludibriar também tiveram um papel importantes.[53]


A longo prazo, o fracasso do cerco levou a uma mudança profunda na natureza da guerra entre Bizâncio e o califado. O objetivo muçulmano de conquistar Constantinopla foi efetivamente abandonado e a fronteira entre os dois impérios estabilizou-se ao longo da linha das montanhas do Tauro e Antitauro, na qual ambos os lados levaram a cabo raides e contra-raides regulares. Nesta guerra de fronteira incessante, as cidades e fortalezas fronteiriças mudaram de mão frequentemente, mas o contorno geral da fronteira manteve-se basicamente inalterado durante mais de dois séculos, até às reconquistas bizantinas do século X.[54] Da parte dos muçulmanos, os raides acabaram por adquirir um caráter quase ritual, sendo valorizados como uma demonstração da jiade (guerra santa) e um símbolo do papel do califa como líder da comunidade muçulmana.[55]


O resultado do cerco teve também uma importância macro-histórica considerável. A sobrevivência da capital bizantina preservou o império como baluarte contra a expansão islâmica na Europa[56] até ao século XV, quando caiu para os Turcos otomanos. Juntamente com a Batalha de Poitiers de 732, a defesa bem sucedida de Constantinopla é muitas vezes apontada como um dos dois eventos marcantes para o fim da expansão islâmica na Europa. Como o historiador militar Paul K. Davis escreveu, «ao repelir a invasão muçulmana, a Europa permaneceu em mãos cristãs, e não houve mais ameaças muçulmanas sérias à Europa até ao século XV. Esta vitória, coincidente no tempo com a vitória dos Francos em Tours (Poitiers) em 732, limitou a expansão islâmica a ocidente ao mundo mediterrânico do sul.»[57]J. B. Bury chamou a 718 uma "data ecuménica", enquanto o historiador grego Spíridon Lámbros comparou o cerco à Batalha de Maratona e Leão III a Milcíades.[58] Os historiadores militares modernos incluem frequentemente o cerco na lista de "batalhas decisivas" da história mundial.[59]



Impacto cultural |


Entre os Árabes, o cerco de 717–718 tornou-se a mais famosa das suas expedições contra Bizâncio. Sobreviveram vários relatos, mas a maior parte deles foram escritos em datas posteriores e são semi-ficcionados e contraditórios. Segundo a lenda, a derrota foi transformada em vitória: Maslama só partiu depois de ter entrado simbolicamente na capital bizantina no seu cavalo, acompanhado por trinta cavaleiros, sendo recebido com honras por Leão, que o conduziu a Santa Sofia. Depois de Leão ter prestado homenagem a Maslama e prometido pagar tributo, o general árabe e as suas tropas — 30 000 das 80 000 no início da campanha — tomaram o caminho de volta para a Síria.[60]




A Mesquita Árabe, que segundo a lenda (muito improvável) foi mandada construir por Maslama durante o cerco


As histórias do cerco influenciaram episódios similares na literatura épica árabe. No conto de Omar ibne Alnumane e dos seus filhos em “As Mil e uma Noites” há um cerco a Constantinopla; e tanto Maslama como o califa Solimão surgem num conto das
“Cento e Uma Noites” (Mi'at Layla Wa Layla) do Magrebe. O comandante da guarda pessoal de Maslama, Abdalá al-Battal, tornou-se uma figura celebrada na literatura árabe e turca como "Battal Gazi" devido aos seus feitos nos raides árabes das décadas seguintes. De forma semelhante, o épico árabe do século X “Delhemma”, no qual um dos heróis é Abdalá, oferece uma versão ficcionada do cerco de 717–718.[61]


As tradições posteriores muçulmanas e bizantinas também atribuem a Maslama a construção da primeira mesquita de Constantinopla, perto do pretório da cidade. Na realidade, a mesquita vizinha do pretório foi provavelmente erigida cerca de 860, quando uma embaixada árabe visitou a cidade.[62] A tradição otomana atribui a Maslama a construção da Mesquita Árabe, situada em Gálata, fora de Constantinopla propriamente dita, apesar de ser erroneamente datada de cerca de 686, provavelmente confundindo o ataque de Maslama com o primeiro cerco árabe na década de 670.[63]


Devido às sucessivas derrotas em frente às muralhas de Constantinopla e à resistência continuada do estado bizantino, os muçulmanos começaram a projetar a tomada da cidade num futuro distante e a queda de Constantinopla acabou por ser considerada um dos sinais da chegada do fim do mundo na escatologia islâmica.[64]



Notas |



  • Este artigo foi inicialmente traduzido do artigo da Wikipédia em inglês, cujo título é «Siege of Constantinople (717–18)», especificamente desta versão.



  1. Note-se que o mapa apresentado na introdução não é da época do cerco, tendo sido incluído apenas para ilustrar o texto e eventualmente ajudar a esclarecer algumas partes do texto que podem ficar mais claras tendo uma ideia da topografia da cidade e da localização de alguns dos locais mencionados.


  2. Teófanes, o Confessor menciona 15 de agosto como a data de início, mas provavelmente isso deve-se a espelhar a data de partida dos Árabes no ano seguinte. Em contrapartida, o patriarca Nicéforo I relata explicitamente que a duração do cerco foi 13 meses, o que implica que começou em 15 de julho.[1]


  3. Esta Fénix (Phoenix) é geralmente identificada com a atual Finike, na Lícia, mas também pode ser Fenaket, em Rodes,[17] ou ainda a Fenícia (atual Líbano), célebre pelas suas florestas de cedros.[18]


  4. Para um exame mais detalhado das negociações de Leão com os Árabes antes de Amório em fontes bizantinas e árabes ver Guilland 1959, pp. 112–113, 124–126.


  5. Segundo as estimativas do historiador Hugh N. Kennedy, baseadas nos números encontrados nos registos militares (diwans) contemporâneos, o número total de homens à disposição do Califado Omíada cerca do ano 700 estaria entre 250 000 e 300 000, espalhados pelas diversas províncias. Contudo, não é claro que parte desse número podia ser efetivamente envolvido numa campanha em particular, e não tem em conta os recursos suplementares que poderiam ser mobilizados em circunstâncias excecionais.[31]


  6. Segundo John Julius Norwich: «os búlgaros não morriam de amores pelos bizantinos, mas preferiam-nos aos infiéis e em todo caso estavam determinados que, se Constantinopla caísse, haveria de ser para os búlgaros em vez dos árabes.»[35]


  7. O almirante Solimão é frequentemente confundido com o califa contemporâneo homónimo nas fontes medievais


  8. Satyros situava-se onde é hoje o bairro de Küçükyalı, parte do distrito de Maltepe, que por sua vez corresponde à antiga Brías. Kartalimen situava-se no atual distrito de Kartal.




Referências




  1. Mango & Scott 1997, p. 548 (nota #16); Guilland 1959, pp. 116–118


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  7. Haldon 1990, p. 80; Lilie 1976, pp. 120–122, 139–140


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  17. Mango & Scott 1997, p. 537 (nota #5)


  18. Lilie 1976, p. 123 (nota #62).


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  28. Guilland 1959, p. 110; Kaegi 2008, pp. 384–385; Treadgold 1997, p. 938 (nota #1)


  29. Guilland 1959, p. 110; Kennedy 2001, p. 47


  30. Canard 1926, pp. 91–92; Guilland 1959, p. 111


  31. Kennedy 2001, pp. 19–21.


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  41. Brooks 1899, pp. 28–29; Guilland 1959, pp. 122–123; Mango & Scott 1997, p. 546; Lilie 1976, pp. 129–130; Treadgold 1997, p. 347


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  45. Mango & Scott 1997, p. 550; Treadgold 1997, p. 349


  46. Haldon 1990, p. 83.


  47. Lewis 2002, p. 79.


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  49. Blankinship 1994, p. 287 (nota #133); Lilie 1976, p. 133; Treadgold 1997, p. 349


  50. Treadgold 1997, pp. 347, 348.


  51. Blankinship 1994, pp. 34–35, 117–236; Haldon 1990, p. 84; Kaegi 2008, pp. 385–386; Lilie 1976, pp. 143–144


  52. Lilie 1976, pp. 140–141.


  53. Blankinship 1994, p. 105; Kaegi 2008, p. 385; Lilie 1976, p. 141; Treadgold 1997, p. 349


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